VISIBILIDADE PARA O FUTEBOL FEMININO
Júlia Vergueiro é sócia-diretora do clube de futebol feminino amador Pelado Real, criadora da página, blog e podcast Dibradoras — que, além de publicar diversas matérias relacionadas ao futebol feminino, cobriu a Copa do Mundo feminina ao vivo — e jogadora de futebol. Formada em relações internacionais pela PUC-SP, trabalhava no banco Itaú, mas encontrou sua realização profissional em seu hobby: o futebol.
Júlia, eu gostaria de saber como você começou com isso, de onde surgiu a ideia de trabalhar com um time amador de futebol feminino?
Bom, quem teve a ideia do Pelado Real foi a minha sócia, a Bibi, e na verdade não foi algo muito planejado por ela. Basicamente, ela tinha umas amigas que queriam fazer alguma coisa diferente naquele momento, para poder se exercitar e para poder juntar as meninas, e aí ela, que sempre jogou bola, sugeriu: “Vamos jogar bola, eu ensino vocês, a gente pega uma quadra aqui (acho que foi no condomínio de uma das meninas) e a gente brinca”. Aí elas foram, ela meio que deu o treino, ensinou as meninas, que começaram a chamar outras amigas, e em poucas semanas isso cresceu muito, a ponto de ela ter que, efetivamente, reservar uma quadra pra fazer esse jogo, que não dava mais para ser no condomínio de alguém. E aí, se eu não me engano, em três meses tinha gente o suficiente para três turmas de futebol society. Foi aí que deu pra ela perceber que não dava pra ela simplesmente tocar o Pelado como um hobby, que até então ainda nem se chamava Pelado, e aí ela saiu do estágio (ela fazia estágio em uma agência) pra poder fazer isso virar um negócio. Inclusive, foi uma sugestão das amigas que ela passasse a cobrar. Ela achou que fazia sentido e começou a desenhar isso como empresa, mesmo. Isso foi em 2011. Aí, em 2012, eu fiquei sabendo do Pelado por uma amiga da faculdade e fui lá pra jogar, porque eu também sempre joguei bola, a vida inteira, e queria ter uma outra opção além da PUC para jogar. Eu fui, adorei, fiquei acho que uns 9 meses jogando só como cliente do Pelado, até que resolvi fazer uma proposta pra Bibi, pra ver se ela não estava querendo uma sócia, pra poder me juntar a ela e fazer o Pelado crescer mais, porque eu via que tinha muito potencial de fazer mais coisa. Ela aceitou e começamos a tocar. Foi isso.
Que legal, e que coragem! E você considera que o futebol feminino é negligenciado no Brasil? E por quê?
Sim, muito. Em todos os âmbitos. Eu trabalho com futebol feminino amador voltado para adultas, e esta modalidade em si já sofre uma resistência enorme, tanto por parte das pessoas, de quem joga ou de quem deveria estar incentivando as suas filhas, esposas, namoradas a jogar, quanto de empresa, porque é muito difícil conseguir patrocínio pra fazer um campeonato feminino, é muito difícil conseguir quadras que aceitem que a gente vá lá jogar. Já ouvi de quadra de society: “Não, acho que não é uma boa vocês virem jogar aqui, porque aqui não é um espaço pra mulher”. Existe ainda uma resistência enorme. E na parte do profissional é maior ainda, porque se você pensar que são atletas que estão fazendo isso como profissão, isso deveria ter um mínimo de reconhecimento, e também não é o que acontece. A gente não tem estrutura desde a base, então nas escolas é muito difícil ver menina jogando bola, os professores de Educação Física não são treinados pra dar futebol pra meninas, não incentivam que elas joguem futebol.Na prefeitura, também, você não tem espaços públicos onde há um incentivo para que a menina vá jogar.Se a menina chega num espaço público, numa quadra de futebol no meio do Ibirapuera, ela vai ver um monte de menino jogando bola, e é muito difícil que ela se sinta a fim de entrar lá e jogar com eles. Então, desde o começo, desde pequenas as meninas não são incentivadas e aí, quando chega na fase adulta, fica ainda mais difícil de você querer começar uma nova modalidade.
E no nível profissional do futebol feminino, quais você acha que são as maiores dificuldades enfrentadas?
Eu já conversei bastante com algumas jogadoras, e entre as principais questões pra elas, que já estão lá no profissional, está o salário, que é muito baixo. As pessoas acham que só porque são jogadoras de seleção ganham bilhões, que é igual ao universo dos homens. Mas não, elas ganham pouquíssimo, menos que muita gente, e ainda têm que bancar uma estrutura de vida, além de tudo, pra poder ir pro treino, pra poder estar lá sempre. O salário é uma questão, opção de clube pra jogar, tem muita jogadora que joga a vida inteira, que tem habilidade, que tem como despontar, mas não tem onde treinar. Quando a gente pensa num esporte de elite, isso faz muita diferença. Você não ter uma academia pra fazer uma parte física, não ter um campo pra fazer um trabalho tático, não ter um professor orientando... tudo isso faz muita falta. Isso faz com que as meninas não cheguem num nível efetivamente profissional. O futebol feminino profissional hoje, na verdade, é amador. E junto com a questão do salário tem a parte de profissionalização, porque elas não têm carteira assinada, não têm direito a aposentadoria.Então não é, efetivamente, uma profissão. É quase que um hobby a nível (sic) profissional. Eu acho que estes são os principais desafios estruturais.
É, falta bastante estrutura, mesmo em relação a outros países. Ontem eu li uma matéria com uma entrevista com o Marco Aurélio Cunha, a qual dizia que falta maquiagem, e que os shortinhos curtos e essas coisas vão ajudar a dar visibilidade para o futebol feminino. Acredito que, como eu, você discorda dessa afirmação. Eu queria saber, na sua opinião, o que seria uma alternativa, coisas que poderiam ajudar a dar visibilidade para o futebol feminino.
[Risos]Exato... Só pra pontuar, essa história do Cunha está superpolêmica, sim, e por mais que na entrevista em si, e ele está defendendo isso, ele não tenha falado que “com isso a visibilidade vai aumentar”, quem conhece o Cunha e já conversou com ele sobre esse assunto em outros momentos sabe que é isso sim que ele pensa. Mas, ali, ele estava querendo mostrar que as meninas da seleção, hoje, fazem mais questão de se arrumar pra jogar e tudo o mais. O ponto é: que diferença isso faz? Ninguém está preocupado com isso e ele, como diretor da seleção feminina, devia estar se preocupando em falar sobre coisas que, efetivamente, vão trazer melhorias pra modalidade, ainda mais por ser muito visível e influente. Que coisas seriam essas? O que a gente vê muito lá fora, nos Estados Unidos, na Europa, é uma divulgação focada na atleta. Ao invés de falar que ela se arruma, eles destacam os títulos dessas jogadoras, o que elas já conquistaram individualmente e pelos clubes, qual a história que elas têm. Hoje em dia, se você olha pras jogadoras de futebol dos EUA, parece que elas já nasceram assim, como pop stars. Mas não, muitas delas têm uma história de superação incrível, e os americanos se identificam pra caramba com isso. Esse é o tipo de coisa que poderia ter, facilmente, aqui no Brasil, e que tem no masculino. Acho que dar visibilidade pra essas histórias, que a gente sabe que o brasileiro se identifica, seria uma ótima forma de fazer com que as pessoas quisessem conhecer mais sobre as jogadoras, afinal, não tem graça nenhuma assistir a um jogo de futebol se você não sabe quem está jogando. E isso levaria ao que a gente também não tem hoje, que é a divulgação dos grandes veículos da mídia.Não adianta criarmos conteúdos incríveis se os grandes canais – Globo, Band, SporTV, ESPN – não falarem, não transmitirem esse conteúdo para as pessoas. Falta vontade dos responsáveis pelos editoriais desses jornais de colocar esses conteúdos na pauta.
E de que forma você acha que o futebol influencia a vida das meninas que jogam, principalmente no nível amador, e qual o impacto dele na sociedade?
Na vida das meninas eu vejo no dia a dia, no Pelado. Se elas não estivessem ali, provavelmente não estariam em nenhum outro espaço de convivência social, porque tem muito pouco espaço de convivência social pra mulher, ainda, tanto no Brasil quanto lá fora. É uma questão histórica: a mulher, desde sempre, esteve muito mais ligada a ficar em casa do que a usar os espaços públicos, então o futebol é um ótimo incentivo pra fazer com que a mulher vá pra esse espaço e encontre um lugar que é feito para ela, também. O que as meninas sempre me falam é: “É aqui onde eu consigo esquecer dos problemas que eu tenho na vida e no trabalho, onde renovo as energias pra começar o próximo dia, é aqui onde eu não preciso me preocupar com todas as responsabilidades que uma mulher tem”. Querendo ou não, diversas cobranças caem em cima das mulheres, então ali é um momento no qual elas não têm esse peso, e elas podem se preocupar só com elas mesmas, algo que parece tão simples, mas é tão raro para a mulher: poder pensar só nela. Em termos de sociedade é isso, tanto o uso do espaço público pela mulher quanto o empoderamento, porque eu percebo, como uma pessoa que sempre jogou bola, que quando você pratica um esporte, você adquire alguns sensos de responsabilidade, de resiliência, de não ter medo de se expor, que dificilmente você adquiriria em outro lugar. É uma forma de construir competências na mulher de hoje que ela não conseguiria em outro lugar.
Recentemente foi inaugurada, no Museu do Futebol, a exposição “Visibilidade para o futebol feminino”. Não consegui ir por causa da minha perna machucada, mas você foi? O que achou?
Fui! Está incrível!
Você acha que é um passo importante pra essa questão?
Sim, sim. Eu acho que o que o pessoal do museu acertou em cheio foi fazer uma exposição que, na verdade, é uma inclusão no acervo completo do museu. Por exemplo, estava tendo uma exposição sobre Libertadores, na qual você chega no museu e tem uma sala que diz “Copa Libertadores”, e tem um monte de coisa sobre a Libertadores. Não foi isso que eles fizeram pro futebol feminino, você não entra e tem um “canto” só das meninas. Eles incluíram no percurso inteiro, desde a primeira sala, o acervo feminino. Acho que isso é uma representação muito clara de o que o futebol feminino precisa: ser entendido como parte da história, e não como um anexo que quem quiser vê, e quem não quiser simplesmente passa reto. Faz parte da história e, se você for estudar a história, o futebol feminino está no meio.
Estou doida pra ir ao museu. E, pra finalizar, é ano de Copa do Mundo e já começamos bem, mas o que podemos esperar das meninas e o que podemos tirar dessa experiência?
Bom, falando especificamente de Copa, a Seleção Brasileira está indo superbem, foi a única equipe que em dois jogos se classificou pras oitavas com o primeiro lugar garantido. Tem um pouco de não ter caído num grupo superdifícil, mas, ao mesmo tempo, ao olhar pra falta de estrutura e incentivo que elas têm aqui no Brasil, foi uma grande conquista. A expectativa é que isso continue, porque, apesar de todos os problemas que a gente tem aqui, elas tiveram uma preparação razoavelmente boa no começo deste ano, que foi a criação da seleção permanente, que também é polêmica mas que, pensando em termos de conquista de um Mundial, foi muito necessária para manter as meninas aqui, pra garantir entrosamento entre elas, pra elas ganharem estrutura física pra bater de frente com as grandes seleções... tudo isso parece estar fazendo a diferença. O que preocupa é o discurso de sempre das mídias tradicionais, de ficar questionando se esse possível título no Mundial seria o passo que falta pro futebol feminino decolar no Brasil. A gente sabe que não, porque o Brasil já ganhou muita coisa. No Mundial e nas Olimpíadas a gente nunca conquistou o ouro, mas já ganhou prata duas vezes, já ganhou o Pan diversas vezes, fomos seis vezes campeãs do Sul-Americano, então, na verdade, não é uma questão de falta de títulos. A Marta é cinco vezes melhor do mundo, a Formiga, também, com vários recordes, então, é uma preocupação ficar pensando que o título seria a grande solução pra isso, porque aí todos os esforços ficam focados só em conseguir fazer com que uma seleção, uma equipe específica, ganhe o título. Isso é uma visão de curtíssimo prazo, porque aí, se não levar o título, “ferrou”, e não vai ter nenhuma base pra renovar a seleção e tentar ganhar um título daqui a quatro anos, porque ninguém está pensando no longo prazo.
Você tem mais algum comentário, alguma coisa que gostaria de falar sobre a questão da visibilidade do futebol feminino?
Eu acho que um ponto que sempre se discute muito, e foi até bom que você não perguntou, porque é algo que sempre perguntam e eu insisto que não é a questão, é o lado do machismo e o quanto as pessoas não gostam de futebol feminino, porque a nossa sociedade é muito machista. Eu concordo que o machismo é impactante, que é um “dificultômetro”, mas não é o culpado principal, e as pessoas precisam começar a olhar para o futebol feminino de forma apartada da questão do machismo e do sexismo. Por mais que elas tenham uma correlação, se pensarmos em soluções para a sociedade deixar de ser machista para podermos gostar de futebol feminino nunca vamos chegar a uma solução, pois não é o futebol feminino que vai resolver esse problema, e nem tem que ser. Ter mais mulheres jogando bola faz, sim, com que mude a percepção dos homens e de mulheres em relação a isso, e de alguma forma diminui o machismo, mas não é só isso. As pessoas precisam entender que o futebol feminino é um esporte e precisa ganhar visibilidade por si só, por ser um esporte interessante, e o foco tem que estar nisso. Acho que é uma discussão válida mas que, às vezes, toma uma proporção maior do que deveria.
